CAP.4. O caso Vicente
1. Impossível traduzir meu contentamento com a nova companhia.
Vicente, semblante muito calmo, olhar inteligente e lúcido, irradiava carinho e bondade, sensatez e compreensão.
2 Disse-me de sua alegria por haver encontrado um companheiro médico, alojou-me convenientemente junto dele, demonstrando extrema generosidade fraternal.
3 Era o primeiro colega na profissão, igualmente recém-chegado das Esferas da Crosta, de quem me aproximava de modo direto.
Trocamos ideias largamente sobre as surpresas que nos defrontavam. Comentamos as dificuldades oriundas da ilusão terrestre, a miopia da pequena ciência, os problemas profundos e sedutores da medicina espiritual.
4 Vicente, conquanto não tivesse ainda qualquer visita ao Plano dos encarnados, em caráter de serviço, admirava Aniceto extraordinariamente, e punha-me ao corrente dos estudos valiosos a que se entregava junto dele.
5 Estava cheio de conceitos entusiásticos. Em pouco mais de uma hora, nossa intimidade semelhava-se ao sentimento de dois irmãos unidos, desde muito, nos laços espirituais. O novo companheiro conquistara-me infinita confiança.
6 Evidenciando nímia delicadeza, indagou da minha posição perante os parentes terrestres, ao que respondi com a história resumida de minha singular aventura, ao conhecer as segundas núpcias de minha viúva. 7 Imprimi toda a ênfase possível ao meu relatório verbal, sensibilizando-me, profundamente, no curso da narrativa. Em cada pormenor culminante dos fatos, detinha-me de propósito, salientando meus velhos sofrimentos e relacionando dissabores que me pareciam insuperáveis.
8 Vicente ouviu silencioso, sorrindo a intervalos. Quando terminei a comovida exposição, ele pôs-me a destra no ombro e murmurou:
- Não se julgue desventurado e incompreendido. Saiba, meu caro André, que você foi muitíssimo feliz.
- Como assim?
- Sua Zélia respeitou o companheiro até ao fim, e o segundo matrimônio, em tais circunstâncias, não é de admirar. No meu caso, porém, a coisa foi muito pior.
2. E, dado meu justo espanto, o novo amigo continuou:
- Explico-me.
Meditou alguns instantes, como quem alinhava reminiscências, e prosseguiu:
2 - Não pode você imaginar como foi intenso o sonho de amor do meu casamento. Logo após a aquisição do diploma profissional, aos vinte e cinco anos, esposei Rosalinda, exultante de ventura. Não levava à esposa tão somente uma situação material confortadora e sólida, no terreno financeiro, mas também os meus tesouros de afeto e devotamento. 3 Minha felicidade não tinha limites. Em pouco tempo, dois filhinhos enriqueceram-me o lar ditoso. Meu bem-estar era inexprimível. Em virtude das reservas bancárias, não me especializei na clínica, consagrando-me, todavia, apaixonadamente, ao laboratório. 4 Atendendo aos meus pendores, não me foi difícil atrair a confiança de numerosos colegas e vários centros de estudos, multiplicando pesquisas e resultados brilhantes. 5 E Rosalinda era a minha primeira e melhor colaboradora. De quando em quando, notava-lhe o enfado no trato com os tubos de ensaio, mas minha esposa sabia então calar as contrariedades pequeninas, a favor da nossa felicidade doméstica. Parecia compreender-me integralmente. Era, aos meus olhos, a mãe dedicada e companheira sem defeitos.
6 Contávamos dez anos de ventura conjugal, quando meu irmão Eleutério, advogado, solteiro, algo mais velho que eu, deliberou localizar-se junto de nós. Rosalinda foi inexcedível em atenções, considerando que se tratava de pessoa de minha família. Eleutério entrou em nossa casa como irmão. Embora residisse em hotel, compartilhava dos nossos serões caseiros, sempre bem posto e interessado em agradar.
7 Observei, desde então, que minha mulher se modificava pouco a pouco. Exigiu fosse contratada uma auxiliar que a substituísse nos meus serviços, alegando que os nossos filhinhos não dispensavam assistência maternal, mais assídua. Anuí, satisfeito. Tratava-se, afinal, de providência interessante ao bem-estar de nossos filhos. 8 Contudo, a transformação de Rosalinda assumiu caráter impressionante. Passou a não comparecer ao laboratório, onde tantas vezes nos abraçávamos, alegremente, ao vermos coroadas de êxito nossas pesquisas mais sérias. Preferia o cinema ou a estação de repouso, em companhia de Eleutério.
9 Isso me entristecia bastante, mas eu não poderia desconfiar da conduta de meu irmão. Fora sempre criterioso, em família, não obstante ousado e filaucioso nas atividades profissionais.
10 Minha vida doméstica, antes tão feliz, passou a ser de solidão assaz amarga, que eu tentava iludir com o trabalho persistente e honesto.
Негізгі бет 011 | OS MENSAGEIROS | estudo com Haroldo Dutra Dias
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